A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) iniciou o julgamento de dois processos administrativos (envolvendo a Livraria Saraiva e a fabricante de ar-condicionado Springer) que apuram os conflitos de interesses de seus acionistas controladores. Embora ainda não tenha sido tomada uma decisão final, a maioria do colegiado da CVM já se manifestou pela alteração do entendimento sobre o conflito de interesses em ambos os processos.
De início, importante pontuar que o conflito de interesses é matéria disciplinada pelo artigo 115 da Lei das Sociedades por Ações, o qual veda o voto considerado abusivo, ou seja, aquele realizado com fim de causar dano à companhia e seus acionistas ou, ainda, realizado com interesses contrários aos da companhia. Esta matéria é controversa no mercado de capitais, na medida em que o conflito de interesses pode ser interpretado sob duas óticas distintas.
A primeira corrente é denominada “teoria formal” e, mediante uma análise restritiva do artigo 115 da Lei das Sociedades por Ações, determina que a existência do conflito de interesses deve ser identificada antes da realização do voto do acionista. Dessa forma, segundo a teoria formal, a existência de uma situação de potencial conflito de interesses já impediria o voto pelo acionista.
Já sob a ótica da denominada “teoria material” e, mediante uma análise extensiva do artigo 115 da Lei das Sociedades por Ações, é permitido que o acionista vote em Assembleia Geral, desde que realizado de boa-fé, de modo que o seu voto somente será anulado se comprovada a existência de conflito de interesses e, neste caso, o acionista poderá responder pelos danos causados à companhia. Em suma, a existência do conflito de interesses é apurada posteriormente ao voto do acionista.
Em relação ao entendimento da CVM sobre o tema, não havia jurisprudência pacífica sobre o tema, uma vez que a autarquia já se posicionou favoravelmente sobre ambas as teorias mencionadas. Todavia, desde 2010, o entendimento da CVM era majoritariamente pela adoção da teoria formal, ou seja, o acionista estaria previamente impedido de votar.
Nos recentes votos prolatados pelo colegiado da CVM no âmbito do processo administrativo envolvendo a Livraria Saraiva e seu acionista controlador, o diretor Alexandre Rangel, relator do caso, entendeu que não houve exercício abusivo do direito de voto e que o conflito de interesses “não autoriza o impedimento prévio ou formal do exercício do direito de voto por parte do acionista, sendo necessária uma análise da substância da manifestação do acionista para que se possa concluir pela regularidade ou não do voto, o que apenas pode ocorrer a posteriori”.
O diretor Otto Lobo e o presidente da CVM, João Pedro Nascimento, prolataram seus votos e acompanharam a decisão do relator, atingindo a maioria do colegiado da CVM no sentido da interpretação através da teoria material o que, consequentemente, alterará o entendimento que prevalecia desde 2010.
Em relação ao processo administrativo da Springer, a análise da decisão também se manteve na ótica do conflito de interesses sob a interpretação da teoria material. Contudo, diferentemente da decisão proferida no processo envolvendo a Saraiva, os votos reconheceram a ocorrência do conflito de interesses, condenando os acionistas ao pagamento de multa e inabilitação temporária de 69 meses para o exercício de cargo de administrador ou de conselheiro fiscal de companhia aberta, de entidade do sistema de distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização da CVM.
Em que pese ambos os processos estarem com julgamento em curso, a maioria do colegiado da CVM já se manifestou favoravelmente pela mudança de entendimento sobre a interpretação do conflito de interesses. Deste modo, em casos futuros, a CVM tende a interpretar o conflito de interesses sob a ótica da teoria material, em que o acionista poderá votar em Assembleia sem uma análise prévia, e o possível conflito de interesses seria apurado posteriormente.