Crise no Carf ameaça solução de casos bilionários no Brasil
O tribunal administrativo, responsável pelo julgamento de multas que ultrapassam R$ 600 bilhões, tem sofrido intervenções da Justiça que põem sua atuação em questionamento
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), tribunal responsável pelo julgamento de questões tributárias e que possui R$ 614 bilhões em discussão atualmente, tem perdido credibilidade e vem sendo questionado na Justiça desde 2015, com o estouro da Operação Zelotes.
De acordo com o sócio do escritório APGI Advogados e ex-conselheiro do Carf, Ronaldo Apelbaum, a intromissão do Judiciário nas ações julgadas pelo órgão devido a fragilidades internas do tribunal administrativo – que vieram à tona nos últimos anos – pode fazer com que empresas desistam da instância administrativa para grandes discussões. “O trivial vai continuar no Carf, mas teses como o ágio e a subvenção para investimento vão acabar sendo judicializadas”, avalia.
O novo capítulo dessa crise institucional veio com a decisão de uma juíza do Distrito Federal que anulou uma decisão do tribunal administrativo por conta do uso do voto de qualidade, também conhecido como voto de minerva. Esse dispositivo permite que o presidente das sessões do Carf – sempre um conselheiro proveniente do Ministério da Fazenda – resolva os casos em que houver empate entre os oito conselheiros, sendo que quatro são da Fazenda e quatro do contribuinte.
Apelbaum diz que o voto de qualidade é um dos dispositivos equivocados do tribunal administrativo que sobreviveu à grande reforma pela qual o órgão passou em 2015 após as revelações da Operação Zelotes. “Quando o Carf retomou as atividades, em julho de 2015, essa tese de que o voto de minerva poderia ser contestado foi levantada por mim e alguns outros conselheiros”, lembra.
O tribunal administrativo ficou quatro meses com suas atividades suspensas naquele ano porque a Zelotes revelou um esquema de venda de sentenças que envolveu grandes empresas e instituições financeiras. Quando voltou a operar, o órgão fez uma série de alterações em seu regimento. Uma delas foi a profissionalização dos conselheiros que representam o contribuinte, obrigando que eles se desliguem dos escritórios de advocacia em que trabalham antes de integrar o conselho.
O sócio da área tributária do Martinelli Advogados, Carlos Amorim, avalia que o voto de qualidade é um resquício do modelo antigo e que não deveria existir. “O conselho passou por algumas alterações que fortaleceram o corpo jurídico do tribunal. Contudo, segue como um órgão em que o voto do presidente vale por dois.”
Para Apelbaum, o voto de qualidade viola o Código Tributário Nacional, visto que o artigo 112 dessa lei diz que, em caso de dúvida com relação à cobrança de um imposto ou autuação do contribuinte, é melhor não penalizá-lo de qualquer forma.
Foi justamente esse argumento que levou a juíza Adverci Rates Mendes de Abreu, do DF, a derrubar uma decisão do Carf na qual um contribuinte teve sua tese negada em julgamento no qual foi utilizado o voto de qualidade. Em acórdão, a magistrada apontou que o entendimento do tribunal administrativo de que após empate o presidente possa votar novamente a fim de promover o desempate “viola frontalmente os mais basilares princípios democráticos de direito.”
Na opinião de Apelbaum, por mais que as decisões resolvidas por voto de qualidade sejam menos de 10%, são discussões que movimentam muito dinheiro. “As teses que mais geram polêmica no Carf são aquelas que envolvem uma quantidade enorme de recursos. As teses do dia a dia não costumam precisar de desempate, mas também não envolvem muito dinheiro”, explica.
Fratura expostaA crise institucional iniciada com a Zelotes, na opinião dos especialistas, expôs uma série de fragilidades do tribunal, que passou a ser frequentemente alvo de polêmicas. Em 2017, por exemplo, a Medida Provisória 765/2016, depois convertida na Lei 13.464/2017, causou uma celeuma no meio jurídico ao prever um bônus de produtividade aos auditores fiscais atrelado à aplicação de multas. Naquela época, algumas decisões judiciais determinaram a retirada de processos de pauta porque o pagamento do bônus traria um conflito de interesses.
Segundo o sócio-fundador do Andrade Advogados, Rogério Dib de Andrade, o Carf está se esforçando para reduzir a litigiosidade de seus temas, inclusive com a recomendação de que seus conselheiros sigam todas as decisões em repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (STF) ou recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas muito ainda precisa ser feito para que o tribunal retome a sua credibilidade. “Concordo que situações como essa fazem com que o tribunal patine no seu propósito. Há força política e interesses governamentais de receber mais arrecadação, mas acredito que o tribunal vai retomar a credibilidade que tinha antes da Zelotes”, defende o especialista, que espera que haja uma nova mudança no regimento.
Procurado pelo DCI, o Carf disse em nota que “desde a Operação Zelotes tem passado por amplo processo de reestruturação, onde foram implementadas medidas de fortalecimento da governança.” Segundo o órgão, apenas 6% das decisões têm voto de qualidade.
Foto: André Corrêa/Agência Senado.