Fonte: Valor Econômico | Publicado em 15/4/2024 | Clique aqui e veja a publicação original
A inadimplência dos fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs) aumentou em 2023 em meio à piora do cenário de crédito e aos reflexos de crises corporativas como a da varejista Americanas.
Um levantamento da agência de classificação de risco Liberum obtido pelo Valor mostra que no universo dos FIDCs com lastro em recebíveis comerciais, os chamados “multicedente/multisacado”, a inadimplência passou de 4,85% em 2022 para 7,06% em 2023. No primeiro bimestre deste ano, houve uma leve queda, para 6,99%.
A análise foi feita a partir de dados de 120 fundos e considerou a relação entre créditos vencidos acima de 30 dias e o patrimônio líquido dos fundos. Considerando um intervalo maior do vencimento, de 180 dias, o aumento da inadimplência foi de 2,84% em 2022 para 4,04% em 2023 e 4,73% nos dois primeiros meses de 2024.
A “elevada e persistente” inadimplência no ano passado refletiu diretamente o ano desafiador enfrentado pelas pequenas e médias empresas e a pressão do nível de juros, segundo Décio Bapttista Santos, sócio-fundador e diretor comercial da Liberum. O valor máximo de inadimplência foi atingido em junho, quando chegou a 7,5%.
O aumento dos atrasos aconteceu em um momento de forte restrição de crédito. Após o início da crise da Americanas e o surgimento de vários pedidos de recuperação judicial, os bancos buscaram diminuir o risco e reduziram a oferta de recursos, lembra Eduardo Siqueira, diretor de relações com investidores e de mercado de capitais da SRM Asset.
“Foi um movimento sem muita distinção. Até empresas com boa saúde financeira e que honravam seus compromissos enfrentaram essa restrição. Acontece que algumas dessas companhias conseguiram pegar dinheiro em outros lugares, mas uma parte não conseguiu suprir essa deficiência, o que elevou a inadimplência”, diz Siqueira.
A situação só não foi pior graças à atuação dos gestores dos FIDCs, que rapidamente conseguiram fazer mudanças nas carteiras, diz Mauricio Bassi Rincón, sócio-fundador e diretor técnico da Liberum. “Eles acompanharam a crise com bastante pé no chão”, afirma. “O fato de o prazo dos créditos nos FIDCs ser menor também permite que, no menor sinal de fragilidade de uma área da economia, eles possam reorientar a carteira para setores com menos risco em um período de 30 ou 40 dias.”
Para 2024, as perspectivas são boas para o mercado de FIDCs, considerando a trajetória de queda da taxa Selic e alguns sinais de retomada da economia. Caso o cenário se confirme, o esperado é que a inadimplência volte a níveis mais controlados. “A indústria só vai crescer, e deve crescer de forma sustentável porque há muitos segmentos que necessita de crédito e que ainda não conseguem acessar”, afirma Santos.
Já no primeiro trimestre, houve uma melhora da qualidade da demanda por parte das empresas, segundo Siqueira, da SRM. “Enquanto no ano passado a demanda era para tapar buraco, hoje vemos uma demanda nova, inclusive de ‘players’ novos, de gente que está vendendo mais e, por isso, busca mais dinheiro no mercado”, diz.
Também é esperada uma procura pelos recursos de FIDC para o pagamento do crédito captado durante a pandemia da covid-19, segundo Thiago Figueiredo, diretor de investimentos na gestora Intrabank, que atua com fundos estruturados e é mais voltada para empresas industriais, de áreas como metalurgia, setor automotivo e papel e celulose.
“Muitas empresas usaram um benefício do governo que garantia linhas de financiamento subsidiadas pelo FGI [Fundo Garantidor de Investimentos, que deu cobertura a uma linha aberta na pandemia]. O período de carência de algumas dessas linhas está se encerrando e, agora, elas vão buscar recursos para honrar os pagamentos “, diz Figueiredo.
O Intrabank fez um levantamento a partir dos dados de 495 empresas com faturamento anual entre R$ 150 milhões e R$ 2 bilhões. Desse total, quase 80% tinham recursos tomados na linha do FGI. “Foi um programa emergencial que, de fato, ajudou bastante a oxigenar alguns setores, mas agora as companhias devem substituir o FGI no balanço por outros instrumentos do mercado”, diz o executivo.
O primeiro semestre foi desaquecido, mas no segundo ocorreu um salto no número de FIDCs”
— Walter Fritzke
O avanço do número de fundos foi influenciado por alguns fatores, sendo a reforma da Resolução 175 da Comissão de Valores Mobiliários o principal deles, segundo Walter Fritzke, responsável pela área do mercado de capitais do Martinelli Advogados.
“O primeiro semestre foi desaquecido, mas no segundo ocorreu um salto no número de FIDCs. A nova regra entrou em vigor em outubro e em setembro já foi possível ver esse crescimento. Foi a resposta do mercado para a modernização dessa regulação”, afirma Fritzke.
A medida flexibilizou os investimentos em direitos creditórios, permitindo que investidores de varejo, e não apenas os qualificados e profissionais, pudessem investir nos fundos. Além disso, estabeleceu o registro dos títulos pelas registradoras centrais, instituições autorizadas pelo Banco Central com o objetivo de evitar riscos de fraude, o que trouxe mais segurança, diz o advogado.
Considerando o volume de novas emissões de FIDCs, porém, houve queda de 12% em 2023, ante o ano anterior, conforme dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). As ofertas passaram de R$ 46,2 bilhões para R$ 41,3 bilhões no período. No primeiro trimestre de 2024, somaram R$ 11 bilhões.
“As operações ficaram mais concentradas no período após outubro. Vimos algumas ofertas ao longo de 2023, mas nada comparado ao que ocorreu em 2022, 2021 e mesmo em 2020, quando iniciou a pandemia”, diz Otávio Borsato, sócio do escritório Barcellos Tucunduva Advogados.